domingo, 22 de maio de 2011

A cura pela palavra


Toda vez que assumia a direção de seu carro, o gerente de vendas Roberto manifestava sintomas descritos pela literatura médica como os da síndrome do pânico. Suava frio, faltava-lhe ar, sentia dormência nas mãos, dores no peito e, por fim, na certeza de que teria uma síncope, entrava em desespero. Funcionário de uma grande empresa, seu trabalho exigia que ele dirigisse por longas distâncias.

Roberto procurou um psicanalista para tentar entender a origem da sua angústia automobilística. Em uma das sessões, lembrou-se de um trauma de infância: o dia em que pulou o muro para roubar goiabas no quintal da vizinha, se apoiou em dois canos de um circuito elétrico e levou um choque de 220 volts. Tremeu como um apoplético até que alguém desligou a eletricidade. O episódio, ao que parece, estivera longamente reprimido no inconsciente.

Enquanto contava a história, demonstrou com gestos como se agarrara aos canos. O psicanalista percebeu que a posição das mãos era a mesma usada para segurar o volante do carro. O diagnóstico era óbvio: o pânico de dirigir era uma reminiscência reprimida do episódio traumático. Com a cena vindo à consciência, os ataques cessaram.

Mas Roberto desenvolveu outra neurose, também de cenário automobilístico. Passou a achar que os outros motoristas o olhavam como se ele fosse homossexual. Numa sessão com o analista, recordou-se de uma passagem da infância que esquecera completamente: quando brincava com outras crianças num terreno baldio, o mais velho da turma estuprou o garoto caçula no banco de trás de um carro abandonado. Roberto disse ao psicanalista que assistira o estupro com inveja. Queria ter sido o escolhido.

O analista relacionou a lembrança, encoberta em sonhos e frases de Roberto, e lhe explicou que o desejo de passividade era fruto de sua história. Roberto havia sido abandonado pela mãe aos 5 anos, o que o obrigou a assumir algumas tarefas domésticas. Desde então, era ele quem desempenhava o papel feminino na família. A interpretação psicanalítica deixou Roberto aliviado: o impulso infantil não significava, necessariamente, que fosse gay.

“Ver um paciente sair cheio de si do consultório é uma das coisas mais gratificantes do mundo”, disse-me o analista de Roberto. Ele se chama Heitor Antonio da Silva. Recebeu-me no seu escritório em Itaperuna, no interior do Rio, decorado com fotos de netos, filhos e uma reprodução do consultório de Sigmund Freud, em Viena. Aos 63 anos, é alto, gordo e tem uma voz altissonante. Os cabelos que lhe restam são pintados de preto, e as unhas, de esmalte.

Em 1996, ele foi um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil. Hoje, ela é a maior associação de psicanalistas da América Latina. Como em qualquer sociedade freudiana, os candidatos fazem terapia com analistas mais experientes e participam de seminários sobre os escritos de Freud. Um dos objetivos da Sociedade Ortodoxa, explicou Silva, é popularizar a psicanálise. Para tanto, ela produz apostilas de conteúdo simplificado, forma psicanalistas com rapidez e cobra barato.

Além de psicanalista, Silva é pastor evangélico. “Não há contradição entre Freud e a Bíblia”, disse. “As religiões dizem como a pessoa deve se comportar em função de uma fé, mas só a psicanálise mostra a pessoa como ela é”, observou. Falando com o vigor de um profeta, explicou que, assim como a psicanálise é absoluta para a mente, a religião o é para o espírito. “Não existe incompatibilidade entre verdade e verdade”, disse. “Se uma coisa é verdadeira, tem que ser compatível com qualquer outra verdade. Se há conflito é porque uma – ou as duas – é falsa.”

Na Sociedade Ortodoxa criada por Heitor da Silva, o aspirante a analista conclui os estudos em dois anos, com duas aulas por mês. No mesmo período, ele tem que passar por oitenta sessões de análise pessoal – o que na média significa menos de uma por semana. Já na Sociedade Brasileira de Psicanálise, a primeira a ser criada na América Latina, a formação de um profissional dura quatro anos, mas para se matricular é obrigatório que já tenha feito ao menos dois anos de análise. São duas aulas semanais e 390 sessões de análise ao longo de todo o curso.

Durante quatro meses, participei do curso de formação da Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil. Por 230 reais ao mês, tive aulas nas noites de sexta-feira e no sábado durante o dia. Se continuasse o programa, em março de 2012, receberia o certificado de psicanalista, o que me credenciaria a atender meus próprios pacientes.

Na turma, éramos nove. Entre eles, duas pedagogas, uma policial militar e um professor de matemática. Os professores se mostraram condescendentes com as faltas, tolerantes com os atrasos e nunca cobraram a realização das tarefas que determinaram. Aliás, quando foi pedido que escrevêssemos uma resenha, metade da turma ignorava o significado da palavra “resenha”.

A maioria dos alunos não era evangélica. Quando um aluno abordava as relações entre análise e religião, perguntando, por exemplo, se a cura de um distúrbio mental poderia ser obtida por meio de orações, os professores repetiam a mesma frase: “Aqui não misturamos psicanálise com religião.”

Apesar de as turmas de formação serem organizadas por pastores evangélicos, e de haver um número significativo deles nos cursos, Heitor da Silva nega qualquer orientação religiosa no conteúdo programático.

Mas a religião serve de baliza. Numa das apostilas (32 páginas de papel azul xerocadas, encadernadas em espiral e cobertas por uma capa de plástico) aparecem os “transtornos dissociativos”. O professor explica que o “transtorno de transe e possessão” não se refere ao “demônio”, mas à “histeria”.

Silva acredita que há preconceito intelectual em relação aos evangélicos. “O Brasil é um país muito provinciano”, comentou. “Os evangélicos são tratados como se fossem todos farinha do mesmo saco. Mas um batista e um cara da Universal não se sentam no mesmo banco.” Silva integra a Convenção Batista Fluminense desde a juventude.

Na década de 80 Heitor da Silva descobriu que as ideias de Freud eram fundamentais para o aprimoramento de quem quisesse disseminar a Palavra divina. “Com a psicanálise você passa a entender quem é e como funciona o próximo, o que acontece dentro dele. Isso é imprescindível para quem vai aconselhar ou ajudar alguém”, disse. Segundo ele, na época, era impensável falar em análise dentro de uma igreja: “Parecia que Freud era o irmão gêmeo do diabo. Era tido como permissivo, imoral, que só falava em sexo, até mesmo na sexualidade das tão puras crianças. Meus colegas me viam como um pornográfico com ideias malucas.”

Diante da adversidade, Silva perseverou. Quando foi cotado para a presidência da Convenção Batista Fluminense, viu uma oportunidade para, como disse, “enfiar a psicanálise goela abaixo desse povo”. Mas foi boicotado pelos colegas e pela mídia especializada. “Na revista presbiteriana Vinde, o reverendo Caio Fábio escreveu dizendo que os meus fiéis chegavam à igreja e eu os mandava deitarem no divã”, afirmou.

Enterrou então o sonho de ter seu próprio rebanho e um programa de televisão em rede nacional. Mas não devido à derrota, e sim à autoanálise e à religião. “Era vaidade da minha parte”, disse. E completou: “Conversei com Deus e Ele tinha outros planos para mim.” Descobriu, por fim, sua verdadeira incumbência nesse vale de lágrimas: “Minha missão era mesmo essa coisa maluca de espalhar a psicanálise pelo Brasil.”

Embora o início tenha sido difícil, Silva mais uma vez perseverou. Uma de suas iniciativas de impacto foi o Projeto 2000 2000, que consistia em formar 2 mil psicanalistas até o ano 2000. Não poderia imaginar que superaria suas próprias expectativas. E hoje, enquanto a vetusta Sociedade Brasileira de Psicanálise, do alto do seu quase meio século de vida, tem menos de 1 mil associados, a Sociedade Ortodoxa conta com 3 mil. Entre eles, a ex-candidata à Presidência pelo Partido Verde, Marina Silva, sua ex-aluna.

“Foi um negócio fabuloso, levei a psicanálise para Palmas, Boa Vista, Rio Branco”, ele lembrou. “Havia lugares onde as pessoas falavam ‘Frêudi’ em vez de ‘Fróide’. Eu dizia: Vamos corrigir porque o cara mudou de nome.” Segundo ele, a maioria dos alunos não pretende exercer a profissão. Buscam na psicanálise um conhecimento complementar e o prestígio embutido em um título de “psicanalista”. “Eles querem ser chamados de doutor”, explicou Silva.

Filho de lavradores analfabetos, Heitor da Silva nasceu numa fazenda em Maricá, no interior fluminense. Plantavam feijão, quiabo e maxixe para sobreviver. Lembra que tinha inveja da cama da irmã: dois caixotes com uma porta velha que servia de estrado. O colchão era feito de capim. Durante anos, Silva dormiu no chão de terra, num chiqueirinho feito de bambu. Entrou na escola com 9 anos. Acordava de madrugada, trabalhava na roça e assistia às aulas com as mãos pretas de nódoa de banana. “Eu era tão pobre que meu pai foi até a escola pedir para que eu não tivesse foto na minha caderneta escolar.”

Aos 14 anos, ganhou seu primeiro livro, um dicionário, presente do dono da fazenda, que escreveu uma dedicatória que ele sabe de cor: “Ao bom amiguinho Heitor, com os votos de que estude sempre e chegue a ser um grande homem. Claude, 1960.”

Alistou-se na Aeronáutica, onde serviu por quase oito anos. Foi na Força Aérea Brasileira que se lhe abriram as portas para a espiritualidade. Era cabo mecânico quando intuiu que deveria ser pastor. Em 1973, um colega religioso o convenceu a frequentar um curso de formação em psicanálise. No ano seguinte, Silva receberia o título de psicanalista pelo Centro Acadêmico de Debates e Estudos de Psicanálise, em São Paulo. “Apesar de ter sido criado em condições de vida precárias, nasci para ser um intelectual”, disse.

O consultório do pastor Francisco Batista Neto, formado na primeira turma da Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil, ocupa uma sala no 9º andar de um prédio comercial no centro de Niterói. Em uma manhã recente, a sala de espera estava vazia. Neto – que lembra o ator baixinho da propaganda da cerveja, mas sem o bigode e a boina – saiu do consultório e acompanhou até a porta a mulher que acabara de atender. “Você está tranquila?”, perguntou-lhe antes de se despedir. “Se precisar, pode me ligar a qualquer hora.”

Ele cobra 60 reais por sessão de análise. Completa o orçamento como psicólogo da prefeitura de São Gonçalo e professor de psicanálise na Sociedade Ortodoxa. Também dá aconselhamento pastoral em uma igreja batista em São Gonçalo. Sentado numa cadeira de escritório em frente ao divã de veludo, coberto com uma manta verde que combinava com a cor da parede, ele falou sobre religião e psicanálise: “Não misturo as coisas. Pode procurar, não tem uma Bíblia aqui no consultório. Enquanto o pastor fala e orienta, o analista apenas ouve e ajuda a interpretar. Não tem como confundir”, afirmou.

Ele contou que as razões pelas quais as pessoas procuram uma igreja ou uma terapia são diferentes: “A igreja dá acolhimento, ajuda no desamparo humano, mas não livra alguém das neuroses, fobias e depressões. Consigo encaminhar melhor uma ovelha doente para a cura. Acredito no poder curativo de Deus, mas os conhecimentos científicos também são obra Dele.”

Quis saber como ele agia quando uma situação o colocava diante da dualidade entre fé e ciência. Neto rememorou um episódio que o marcou, um caso de possessão demoníaca. Ele foi chamado por um grupo de oração, no meio do qual um jovem que se debatia era segurado pelas pernas, braços e pescoço. O pastor pediu que todos se retirassem. Alguns temeram por sua segurança física. Achavam que o diabo no corpo do jovem poderia feri-lo. Neto insistiu.

“Eu vi que aquilo era uma crise histérica”, contou. “Esperei passar, encaminhei para o psiquiatra e fiz uma terapia de apoio. Nunca fiz uma oração com ele. Ele teve outros dois surtos, quebrou o consultório inteiro, mas hoje está bem.”

Dias depois, relatei a entrevista com Neto ao pastor Heitor da Silva. Não havia entendido como ele havia diferenciado o surto histérico de uma possessão demoníaca. “A questão é simples: assim como não adianta tentar expulsar o demônio do corpo de um esquizofrênico, é ineficaz analisar o diabo”, respondeu Silva. “Quando uma pessoa está possuída, quem fala é a entidade que está nela. O primeiro caso deve ser encaminhado a um psiquiatra, e o segundo a um exorcista.”

Usando um tom de voz professoral e didático, Silva discorreu sobre as características do esquizofrênico: ele tem alucinações auditivas, visuais, táteis e olfativas. Geralmente, acha que está com algum órgão podre, que algo pega fogo ou está caindo no fundo de um poço. Também tende a deixar a higiene de lado: para de tomar banho, não troca de roupa ou veste uma peça por cima da outra.

“Agora, se uma pessoa diz que está ouvindo vozes, mas está limpinha, sorridente, sofreu uma transformação facial e na voz, isso não é próprio do esquizofrênico”, explicou. Fez um longo silêncio. “Ainda assim, se a dúvida persistir, há um teste bíblico conhecido por todos os pastores e padres”, completou, como se fizesse uma confidência. 

Em uma das cartas do apóstolo João, no Novo Testamento, está escrito que quem não confessar que Jesus Cristo veio em carne para a Terra, esse é o espírito do Anticristo.

Heitor da Silva alterou então o tom de voz para oitavas acima de seu normal, fechou os punhos e disse bem alto: “Aí é só você perguntar: ‘Você confessa com a sua boca que Jesus Cristo veio em carne?’” Se a pessoa estiver possuída, explicou o pastor, ela vai se calar, sacudir a cabeça, grunhir, dizer que não ou se debater. Será incapaz de confirmar a premissa. Se estiver tendo um ataque histérico, dirá “Confesso”, e continuará no transe do surto.

Voltando à voz normal, encerrou o raciocínio: “A questão é que os religiosos tendem a achar que tudo é problema religioso, e os céticos que tudo é problema para a ciência. Mas o universo é mais complexo do que isso e a ciência não desvendou um por cento dele. A psicanálise só trata a possessão demoníaca como sintoma clínico porque desconhece o teste milenar do manual de exorcismo.”

Em O Futuro de uma Ilusão, publicado em 1927, Freud escreveu sobre religião, detendo-se sobre o cristianismo. Frente ao desamparo, as pessoas imaginariam um pai poderoso que, com perfeição invejável, dá sentido aos enigmas da vida e às crueldades do destino, defendendo-as da força esmagadora da natureza. Como o pai biológico, o deus do cristianismo seria fonte de medo e inveja, com a diferença de que compensaria os sofrimentos concretos do presente com vida eterna e feliz após a morte. Concluiu, na fórmula famosa, que “a religião é a neurose obsessiva universal da humanidade”.

Dois anos depois, em O Mal-Estar na Civilização, Freud classificou a religião de “delírio de massa”. Ela seria uma fase infantil da humanidade, a ser superada com o triunfo da ciência e da razão sobre as superstições e misticismos. “O afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento”, escreveu.

Numa carta a um discípulo, o pastor suíço Oskar Pfister, porém, Freud manifestou tolerância com a dupla condição do colega: “Que o senhor possa ser um analista tão convicto e, ao mesmo tempo, um homem espiritual, pertence às contradições que tornam a vida interessante.” Freud se dizia um “herege incurável” e defendia que a visão de mundo científica é incompatível com a religiosa.

Outro amigo de Freud, Theodor Reik, foi acusado de charlatanismo por exercer a psicanálise sem ter diploma de medicina. Freud publicou então A Questão da Análise Leiga, no qual defende que qualquer pessoa que tenha feito uma formação psicanalítica, e tenha sido submetida a uma análise própria, poderia exercê-la, no quadro de uma sociedade de profissionais da área. Ele temia que a psicanálise fosse “medicalizada”, ou seja, se tornasse uma mera subdivisão da psiquiatria nas faculdades de medicina. Segundo ele, a teoria do inconsciente deveria ser estudada por aqueles que se interessam pela evolução da civilização humana e suas principais instituições como a arte, a religião e a ordem social.

Na carta a Pfister, Freud acrescentou: “Não sei se o senhor adivinhou a ligação secreta entre A Questão da Análise Leiga e O Futuro de uma Ilusão. Na primeira, quero proteger a psicanálise dos médicos; na segunda, dos sacerdotes. Quero entregá-la a uma categoria de curas de alma seculares, que não necessitam ser médicos e não podem ser sacerdotes.”

Em parte, é por isso que não há lei ou norma que regulamente o exercício da psicanálise. Com certificado de um curso de formação, um biólogo, um carpinteiro e um pastor podem abrir um consultório e cobrar para ouvir as angústias de seus pacientes.

No ano 2000, o pastor Heitor da Silva redigiu um projeto de lei para regulamentar e “dar dignidade” à profissão de analista. O ex-deputado Eber Silva, companheiro de igreja do ex-governador Anthony Garotinho, o apresentou na Câmara dos Deputados. Pelo projeto, a psicanálise se tornaria um curso universitário com as regras para a formação dos profissionais estabelecidas pelo Ministério da Educação.

Silva achava que, com uma legislação séria, haveria mais analistas no Brasil. “Olha que coisa boa para a saúde mental da população!”, explicou.

As críticas não tardaram. Sociedades estabelecidas, que não participaram da elaboração do projeto, sustentaram que a proposta mostrava desapreço pelos valores da tradição psicanalítica, que há mais de um século funciona em instituições autônomas. Também diziam que era impossível padronizar o tempo necessário de análise pessoal do aluno. Como o projeto ameaçasse ir à votação no plenário, correntes lacanianas, kleinianas e winnicottianas, e todas as suas aguerridas subdivisões, se uniram numa aliança inédita para protestar contra a proposta do pastor Silva. Conseguiram barrá-lo.

Três anos depois, Heitor da Silva tentou reapresentar o projeto através de outro deputado, mas também não teve sucesso. “Seria um grande passo para a psicanálise, mas isso não acontece por causa de pressões burras de um pequeno grupo que se acha dono da verdade”, disse Silva. Julga que as sociedades tradicionais são demasiado intelectualizadas, elitistas e querem reter o poder a qualquer custo. “Eles se consideram semideuses, aprisionaram a psicanálise e impedem que ela chegue às massas.”

Em sua avaliação, a psicanálise deveria deixar de ser privilégio dos ricos para ser uma ferramenta de apoio no equilíbrio emocional de massas e mais massas. “Nos últimos quarenta anos, a população brasileira dobrou e o número de psicanalistas não acompanhou a estatística”, disse.

A população não só dobrou como se urbanizou de maneira acelerada. Milhões de brasileiros que moravam em núcleos isolados no campo, onde eram submetidos ao poder dos senhores da terra e da Igreja Católica, num espaço de poucos anos foram atirados em periferias de cidades desorganizadas. Nelas, a força da desagregação dos valores tradicionais é enorme. Pobreza, desemprego, baixa escolaridade, tentações do sexo, do álcool e da propaganda, incerteza, ausência de laços sociais – foi nessa paisagem que as igrejas evangélicas vicejaram. E é nela que aumentaram as taxas de sofrimento psíquico e, consequentemente, a demanda por tratamento.

A China passou por processo semelhante, e ainda mais brutal. Avalia-se que hoje entre 200 mil e 300 mil chineses se suicidem anualmente. Com isso, a psicanálise, longamente proibida, começou a se espalhar. Sociedades freudianas de Paris e Berlim partiram em busca desse novo mercado de sofredores psíquicos e se estabeleceram em Xangai e Pequim. Obras de Freud e Lacan estão sendo publicadas em chinês. (Do ponto de vista marxista, é uma ironia da história: a psicanálise, ideologia burguesa, reaparece num país à medida que o capitalismo é restaurado.)

Os planos de popularização da psicanálise expostos pelo pastor Silva podem também reproduzir a lógica missionária protestante, mais especificamente a de sua Igreja, a Batista. No livro Os Evangélicos, a antropóloga Clara Mafra, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ressalta que, enquanto os metodistas, luteranos e presbiterianos eram conhecidos pelo rigor na seleção de seus candidatos para o batismo, os batistas apostaram no uso massivo da propaganda religiosa como ferramenta de arregimentação.

Das igrejas protestantes históricas, a Batista é a que tem o maior número de fiéis. Foi dela que saiu a Assembleia de Deus, a primeira igreja pentecostal no Brasil, que mais tarde se ramificou para a Igreja Pentecostal de Nova Vida, frequentada por Edir Macedo até que ele criasse a Igreja Universal do Reino de Deus.

No universo dos psicanalistas laicos, o que faz um terapeuta ser considerado sério e competente é o reconhecimento de seus pares e o prestígio da sociedade na qual foi formado e é associado. É por isso que a indicação e as virtudes de um bom analista são, em geral, propaladas pelo boca a boca de pacientes e terapeutas. A Sociedade Ortodoxa de Silva busca funcionar dentro das regras das tradicionais. Mesmo assim, foi objeto de mais de vinte processos judiciais.

O Conselho Federal de Psicologia e a Associação Brasileira de Psicanálise Clínica já a acusaram de “propaganda enganosa e abusiva” e de praticar uma “falsa psicanálise”, vinculada à Bíblia. Para eles, o grupo de Silva faz uma apropriação indevida da psicanálise, além de iludir os alunos ao pretensamente capacitá-los para o exercício da profissão. Todos os processos foram arquivados e a Sociedade Ortodoxa revidou na mesma moeda: acionou judicialmente o Conselho Federal de Psicologia por preconceito religioso.

Silva admite que a Sociedade Ortodoxa tenha formado maus psicanalistas, mas, argumentou: “Isso é culpa de quem não quis se aprofundar nos estudos, e pode acontecer em qualquer lugar.” Há pouco, dois pastores foram expulsos da Sociedade e de suas igrejas, na Bahia. Haviam desobedecido à interdição de ter relações sexuais com analisandas.

“Em qualquer lugar, basta um psicanalista pilantra num consultório, com portas fechadas e um divã”, disse Silva, aludindo ao conceito psicanalítico de “transferência”. “A paciente se apaixona, vai toda bonita para o consultório, o olhinho começa a brilhar e créu, aquela música moderna que tem por aí.” Depois das expulsões, Silva redigiu um código de ética para a instituição.

Houve outro caso difícil em Belo Horizonte. O coordenador do curso de lá procurou Silva e disse que havia acontecido uma desgraça. Um dos alunos, pastor, depois de formado, abandonou a igreja, abriu consultório, largou a mulher, começou a beber e a fumar. O coordenador, também pastor, temia que o fenômeno se repetisse. “Eu disse a ele que a psicanálise fez um ótimo trabalho na vida desse aluno: ele foi seguir seus verdadeiros desejos. Deus não perdeu um fiel porque tinha nas mãos um lobo que se passava por ovelha”, disse Silva.

Os pastores analistas não têm aceitação unânime nas comunidades evangélicas. Dois manifestos contrários a eles circulam na internet. “Pastores psicanalistas? Essa não!” e “Ovelhas que precisam de pastor” foram escritos pelo pastor Emídio de Souza Viana, da Primeira Igreja Batista Regular de Rio Branco. Ele classifica o movimento psicanalítico de “onda letal que tem invadido as igrejas”. E provoca: “A Bíblia fala em maus espíritos, como isso seria interpretado à luz da teoria freudiana?”

Claus Hinden é alto, tem cabelos brancos e olhos azuis que denotam sua ascendência alemã. Aos 62 anos, formado em engenharia elétrica, é pastor batista, teólogo e é considerado o melhor professor do curso de sexologia da Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil.

Em julho, minha turma assistiu a uma aula dele. Usando slides projetados em PowerPoint, ele primeiro nos mostrou imagens dos aparelhos reprodutores masculino e feminino. Depois, tabelas com as reações genitais e extragenitais de ambos os sexos nas fases de excitação.

Em seguida, Hinden contou o caso de uma paciente sua que estava “virando homossexual”. Ela seria tão apaixonada pelo pai que, para não traí-lo com um homem, teria optado por se relacionar sexualmente com outra mulher.

“Filhos de pais homossexuais não podem sair pessoas sadias”, disse. Uma das alunas, funcionária da Petrobras, incomodou-se com a afirmação. Contou conhecer um casal gay de pais exemplares. “O.k., vamos nos falar daqui a dez anos”, disse-lhe o professor. “Pode anotar aí a data de hoje. Aposto com você que essa criança vai ser problemática.” Segundo Hinden, pais homossexuais inviabilizam a resolução do complexo de Édipo.

Depois da aula, Hinden me disse que, “por uma questão de honestidade”, não atende homossexuais em seu consultório. “Está fora da minha alçada”, afirmou. Ele prefere lidar com pacientes evangélicos, porque eles não se desesperam, “já que confiam em Deus e têm menos dificuldade em lidar com a morte”.

Já Heitor da Silva disse não ter preconceito com a homossexualidade, “porque se trata de uma patologia”. E acrescentou que ela “não é uma coisa boa. É uma agressividade, consciente ou inconsciente. É prejudicial para a pessoa, mas eu não bato, não hostilizo, não xingo. Trato como outro problema qualquer, como a pedofilia e a necrofilia”. Com uma expressão grave, ele explicou que a religião não transforma as pessoas em seres imaculados. “Elas apenas passam a temer o castigo de Deus”, afirmou.

Depois de quatro horas de entrevista, Silva exibia um ar vitorioso. “Eu cheguei ao fim do meu projeto”, disse. “A ideia era abrir uma filial em cada estado e essa filial deveria se tornar independente e continuar fazendo trabalho de formação. Isso está ocorrendo. Os alunos passaram a presidir novas sociedades. Eles ainda estão difundindo a psicanálise.”

Não tardou para que ele se valesse da Revolução Francesa para demonstrar o triunfo de sua missão: “Morreram os revolucionários, mas suas ideias continuam vivas. Quando eu não estiver mais aqui, os resultados ainda vão ser sentidos. Quero crer que esse fenômeno será estudado profundamente. Mas não como um fato religioso, porque nunca foi religioso.”

Jacques Lacan fez outra previsão. Numa célebre entrevista em Roma, em 1974, declarou: “A religião triunfará. A psicanálise sobreviverá, ou não.” Para Lacan, nada mais natural que o fracasso da psicanálise. “Afinal, aquilo ao qual ela se consagra é muito, muito mais difícil.” E resumiu sua tese: “Se a religião triunfar é sinal de que a psicanálise fracassou. Em suma, é uma ou outra.”


 Clara Becker

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